INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DE PERSONALIDADE JURÍDICA,
O QUE FOI CONTEMPLADO NO NCPC?
Janaina de Castro
Sabe-se que as atividades empresárias exercidas por pessoas jurídicas, são de extrema importância e relevância para o cenário econômico-social, já que estas movimentam a economia de um país.
A forma societária é a grande responsável pelo gigantismo das empresas e dos grupos econômicos no capitalismo moderno e na sociedade industrial, quando algumas delas possuem poder econômico maior do que determinadas nações, significando o poder econômico privado sobre o poder econômico público, sobretudo quando uma dessas numerosas empresas, tomando a forma de multinacional, ou, mesmo, de empresa nacional ou estrangeira, inclui na sua política econômica de lucros, a dominação do mercado, de modo que tais objetivos se chocam com os da política econômica governamental mais conveniente ao país em que atuam. Por vezes, a grande empresa, funcionando em países de economia fraca, configura a posição de agente econômico dominante, no qual o Governo comparece como força econômica dominada e o Poder Econômico Privado subjuga o Poder Econômico. (SANCHEZ, 2011, p. 02)
Assim, sabendo que a pessoa jurídica está protegida sob o manto da autonomia patrimonial, por vezes, pessoas inescrupulosas aproveitam para exercerem atos ilícitos com o claro intuito de prejudicar terceiros. As referidas pessoas, acreditam que jamais serão responsabilizadas, já que em tese o negócio celebrado se deu em nome da pessoa jurídica.
Diante da magnitude das Sociedades Empresárias, de outra banda, surgiu um panorama de insegurança quando tais pessoas jurídicas viessem a celebrar negócios, tudo em virtude da própria autonomia patrimonial. Logo, como já destacado, importantes doutrinas corroboraram para a possibilidade de responsabilização de sócios (e também terceiros) perante atos praticados por dadas empresas. A exemplo cita-se novamente os nomes de Gladston Mamede, Fábio Ulhoa Coelho e, Rubens Requião, doutrinador que trouxe na década de 60 a teoria da desconsideração da personalidade jurídica para o Brasil.
Assim, a partir do momento em que a pessoa jurídica é devidamente registrada e passa a figurar no mundo jurídico, é reconhecida a sua capacidade para que exerça todos os atos permitidos em lei. Essa capacidade decorre naturalmente da personalidade a ela conferida, pois passa a ser sujeito de direito e obrigações (OLIVEIRA, 2005).
Ademais, a personalização confere à pessoa jurídica a titularidade de direitos e obrigações. Nas palavras de Fábio Ulhoa Coelho (2014, p. 32), têm-se que: “três exemplos ilustram as consequências da personalização da sociedade empresária: a titularidade obrigacional, a titularidade processual e a responsabilidade patrimonial.”
Conjuntamente com o que já rogava o Código de Defesa do Consumidor e a Lei dos Crimes Ambientais, credores passaram a clamar por uma proteção legal também em âmbito civil. Foi quando, com o advento do Código Civil de 2002, possibilitou-se que dada pessoa jurídica pudesse ser desconsiderada, mesmo que momentaneamente, para que os sócios (e outros) fossem responsabilizados por atos praticados por determinada pessoa jurídica, diante de um quadro de abuso de personalidade jurídica.
Da mesma forma, complementa a doutrina a seguir exposta:
Sempre que se constatar desvios praticados pela sociedade, ao juiz é permitido penetrar, levantar o véu, desestimar ou desconsiderar a personalidade jurídica, para buscar meios, buscar bens, visando garantir o cumprimento de obrigação assumida pelo sócio. As limitações da responsabilidade em certos tipos de sociedade foram criadas pela lei, com o objetivo de fortalecer a iniciativa empresarial, para cumprir seu papel comunitário, na realização de seus objetivos. Todavia, esse manto protetor não pode ser objeto de uso indiscriminado e abusivo. (GIARETA. 1988, p. 111)
Ressalta-se que com o artigo 50 do Código Civil de 2002 a Teoria da Desconsideração passou a fazer parte de ordenamento jurídico civilista, estabelecendo parâmetros para a sua aplicação na hipótese de abuso de personalidade, confusão patrimonial e desvio de finalidade. (BRASIL, 2002)
Em relação ao instituto da desconsideração da personalidade jurídica, Cesar Fiuza (2012) esclarece que existem pressupostos específicos para a aplicação, logo, deve-se ter em mente que a desconsideração da personalidade jurídica é medida anômala excepcional, cujas hipóteses mostram-se corretamente dispostas na Código Civil de 2002. Há também que ser observado dois requisitos independentes para a aplicação da teoria, quais sejam: desvio de finalidade ou confusão patrimonial, perpetrados através do abuso da estrutura da personificação.
Eis que em, 16 de Março de 2015, adveio a lei n. 13.105 que instituiu o Novo Código de Processo Civil, revogando o código anterior (lei n. 5.869/73), após quatro anos de tramitação legislativa. A também conhecida Lei de Ritos Processuais Cíveis deixou o caráter estritamente legalista para tornar-se principiológica. Trata-se, pois, do primeiro Código de Processo Civil brasileiro eminentemente democrático, posto que promulgado após o advento da Constituição da República de 1988. Tal legislação processual tem aplicação imediata no tempo, respeitados os atos praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada. (GOULART, disponível em < http://www.azevedosette.com.br/pt/noticias/o_novo_codigo_de_processo_civil_e_o_direito_intertemporal/3684 >)
O Novo Código de Processo Civil chegou com a imensa responsabilidade de suprir as deficiências cumuladas no sistema judicial e buscar adequar-se para o cumprimento do ideal de oferecimento célere e justo da prestação jurisdicional. Num panorama geral, o cerne é buscar diminuir as formalidades legais sem prejuízo da proteção ao jurisdicionado. (NOGUEIRA, Disponível em: <http://www.editoraforum.com.br/ef/index.php/noticias/o-novo-codigo-de-processo-civil-e-o-sistema-de-precedentes-judiciais-pensando-um-paradigma-discursivo-da-decisao-judicial-2/>.)
Acerca da desburocratização e da necessária interpretação extensiva da lei, já posicionou-se Miguel Reale quando asseverou: “há certos textos legais que provocam tamanha confusão no mundo jurídico que o próprio legislador sente a necessidade de determinar melhor o seu conteúdo”. (2002, p. 173)
Nesta oportunidade, dentro do título relativo à intervenção de terceiros, o Novo Código de Processo Civil previu o incidente de desconsideração da personalidade jurídica nos seus artigos 133 a 137. (BRASIL, 2015)
Da leitura dos referidos artigos, percebe-se que inicialmente o legislador tratou de externalizar que a desconsideração da personalidade jurídica trata-se de incidente, o qual será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando este intervir no processo – Artigo 133. Ademais, o incidente é cabível em qualquer tipo de processo e em qualquer fase processual – Artigo 134. (BRASIL, 2015)
Apesar da referida redação legal, Flávio Tartuce (2016) defende a possibilidade da desconsideração da pessoa jurídica ex officio nos casos envolvendo consumidores ou nas situações de danos ambientais. Até o presente momento, não há posição jurisprudencial que venha a aclarar.
Acerca da instauração do incidente e do seu contraditório tem-se a interpretação do Artigo 134 (BRASIL, 2015):
Se a desconsideração é requerida na petição inicial, o contraditório se faz na própria contestação, dispensando a realização do incidente autônomo. Neste caso, para o processo, devem também ser citados o sócio ou a pessoa jurídica que poderão ser atingidos pela desconsideração. Não haverá suspensão do processo e a prova dos requisitos para a desconsideração devem ser trazidos no curso do processo.
Se requerida em outro momento, o incidente suspende o curso do processo até sua decisão. Será objeto de petição própria, em que o requerente demonstrará a satisfação dos pressupostos materiais para a desconsideração. Além da oitiva da parte contrária, também deverão ser citados para o contraditório o sócio ou a sociedade que poderão ser atingidos pela desconsideração. (MARINONI; ARENHART E MITIDIERO. 2015, p. 209)
Pela doutrina posta acima, verifica-se que neste momento há uma legislação que positiva em âmbito processual as formalidades a serem cumpridas na distribuição de um incidente de desconsideração de personalidade jurídica.
Ademais, Flávio Tartuce (2016) entende ser possível uma interpretação extensiva para incluir também os administradores no pólo passivo do incidente, considerando a omissão do dispositivo – Artigo 134, §2º – uma vez que fala só em sócios e pessoa jurídica.
No que se refere ao contraditório, a lei assegura a parte suscitada o prazo de 15 (quinze) dias para a manifestação competente e o respectivo requerimento de produção de provas – Artigo 135. (BRASIL, 2015)
Fredie Didier Jr. (2016) ventila a possibilidade de se aplicar ao incidente no regime da tutela provisória de urgência, permitindo-se, em tese, a antecipação dos efeitos da desconsideração, quando, logicamente, preenchidos os pressupostos legais para tal concessão.
A decisão que examina o pedido de desconsideração constitui decisão interlocutória. Por isso, é passível de agravo de instrumento (art. 1.015, IV, CPC). Se a decisão é e relator, em se tratando de ação de competência originária do tribunal ou de demanda pendente de recurso, contra este ato é cabível o recurso de agravo interno (art. 1.021, CPC). (MARINONI; ARENHART E MITIDIERO. 2015, p. 209)
Insta asseverar, que mesmo antes da vigência no Novo Código de Processo Civil, a ferramenta usada era igualmente o Agravo de Instrumento para atacar decisão que examinasse o pleito de desconsideração.
Neste sentido, colaciona-se uma jurisprudência publicada em 10/03/2014:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. DEFERIMENTO DO PLEITO DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DA EXECUTADA. ELEMENTOS TRAZIDOS AO CADERNO PROCESSUAL QUE NÃO DEMONSTRAM DESVIO DE FINALIDADE OU CONFUSÃO PATRIMONIAL. INTELIGÊNCIA DO ART. 50 DO CÓDIGO CIVIL . IMPOSSIBILIDADE DE DEFERIMENTO DA MEDIDA EXTREMA. INTERLOCUTÓRIA REFORMADA. "A mera demonstração de insolvência da pessoa jurídica ou de dissolução irregular da empresa sem a devida baixa na junta comercial, por si sós, não ensejam a desconsideração da personalidade jurídica." (Mina. Nancy Andrighi). REBELDIA PROVIDA. (TJ/SC - Agravo de Instrumento AG 20130561979 SC 2013.056197-9 . Data de publicação: 10/03/2014. Disponível em:<https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/busca?q=Deferimento+do+pleito+de+desconsidera%C3%A7%C3%A3o+da+personalidade+jur%C3%ADdica>. Acesso em 10 set. 2017.)
Logo, o legislador confirmou que o exame de pedido de desconsideração de personalidade jurídica, trata-se de decisão interlocutória, cujo remédio jurídico é o recurso de agravo de instrumento.
Estudos já apontam que por mais que se trata da decisão interlocutória, como a decisão do incidente resolve um pedido, é considerada de mérito, apta, portanto, à coisa julgada e à ação rescisória (DIDIER, Jr. 2016).
Por fim, o Artigo 137 do Novo Código de Processo Civil, assevera que “acolhido o pedido de desconsideração, a alienação ou a exoneração de bens, havida em fraude de execução, será ineficaz em relação ao requerente”. (BRASIL, 2015)
Outrossim, diante uma situação prática de incidente de desconsideração de personalidade jurídica, além dos artigos acima explanados, interessante de serem observados o que o legislador dispôs nos Artigos 789 e seguintes do Novo Código de Processo Civil, quando abordou a questão “Da responsabilidade patrimonial”.
Por todo o exposto, verifica-se pois, que o tema “Desconsideração da personalidade jurídica” tratado no Novo Código de Processo Civil é de extrema relevância, considerando que o já fora estabelecido em outras normas até então, nada foi tratado acerca de regras procedimentais, e sim, da possibilidade de aplicação do instituto diante abuso de personalidade jurídica.
E, em consonância ao tema proposto, mister esclarecer queem virtude do cenário econômico obscuro vivido hodiernamente, mais do que nunca, é imperioso a análise cautelosa por parte do Poder Judiciário diante dos incidentes distribuídos. Tudo porque, apesar da crise financeira e moral que o país vivencia, não se deve ter o incidente como regra geral e sim como situação anômala e excepcional.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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[1] Janaina de Castro é graduada em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí (2004). Mestrado em Ciência Jurídica, na área de concentração fundamentos do Direito Positivo, Linha de Pesquisa Hermenêutica e Principiologia Constitucional pela Universidade do Vale do Itajaí (2009). Pós-Graduada em Direito Empresarial e dos Negócios pela Universidade do Vale do Itajaí (2012). Pós-Graduada em Direito Processual Civil – NCPC pela Universidade de Santa Cruz (2017). Advogada militante inscrita na Ordem dos Advogados de Santa Catarina – OAB/SC n. 26.540. Docente de Ensino Superior na UNIVALI e Curso Jurídico situado no Vale do Itajaí. Plataforma lattes: <http://lattes.cnpq.br/6387794871694694>.
Assessoria de Comunicação da OAB/SC.