A Lei Maria da Penha é um marco no Brasil - graças a ela o tema violência contra a mulher veio à tona. A opinião é da advogada Alice Bianchini, autora da obra Lei Maria da Penha (3ª ed., Saraiva, 2016), para quem o dito popular “em briga de marido e mulher não se mete a colher”, ficou para trás.
Catarinense, Doutora em Direito Penal, Mestre em Direito, Professora e Membro da Comissão Nacional da Mulher Advogada, Alice Bianchini diz que, ao analisar o comportamento da violência em outros países, chega-se à conclusão que quanto maior a desigualdade de gênero maior o índice de violência.
A advogada é uma das palestrantes da VI Jornada Catarinense da Mulher Advogada, que ocorre em outubro, em Joinville. Abaixo, uma entrevista exclusiva à equipe de comunicação da OAB/SC.
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OAB/SC: O que mudou no país após Lei Maria da Penha?
Alice Bianchini: A principal mudança deveu-se ao fato de que a partir da Lei um tema que estava invisibilizado veio a tona: a violência contra a mulher. Conforme pesquisa feita pelo DataSenado no ano de 2017, 100% das mulheres conhecem a Lei Maria da Penha. Há, portanto, uma ação pedagógica muito importante. A ideia de que “em briga de marido e mulher não se mete a colher” já não é mais uma realidade no Brasil.
OAB/SC: Como mulher e com ampla experiência na advocacia, qual sua opinião sobre essa lei e como podemos melhorar o cenário de violência contra a mulher?
Alice Bianchini: A Lei é considerada uma das três mais avançadas do mundo. O problema é que uma grande parte dela não saiu do papel, ou seja, não foi efetivada. A parte mais importante da Lei, que são os comandos preventivos, nem sequer é conhecida por aqueles que estão encarregados de fazer valer a Lei.
Infelizmente, ainda há uma camada bem expressiva dos atores jurídicos que são refratários à aplicação da Lei. Fiz uma pesquisa sobre a aplicação da Lei Maria da Penha nos tribunais e na doutrina e consegui elencar mais de 100 questões controvertidas acerca da aplicação dos dispositivos criminais da Lei Maria da Penha. Há questões que possuem sete posicionamentos sobre o tema. E qual o motivo de tanta divergência na aplicação da lei? É simples entender: há os que resistem à aplicação da Lei, há os que são simpáticos, mas não entenderam o alcance e os objetivos da Lei e há os que efetivamente estão aplicando a Lei da maneira como ela foi gestada. Nesse último grupo podemos incluir o STF.
OAB/SC: Qual o maior desafio do profissional da advocacia para combater a violência de gênero?
Alice Bianchini: O maior desafio é alterar a sua própria cultura. Somos um país preponderantemente machista (tanto os homens, quanto as mulheres). Uma pesquisa realizada em fevereiro do presente ano informa que 19% dos homens acham que os homens são superiores às mulheres. E o mais delicado: 14% das mulheres têm o mesmo entendimento.
Outra pesquisa mostra que meninas brasileiras de 6 anos de idade já se sentem menos inteligentes do que os meninos e desistem de fazer atividades por não se sentirem capazes. O nosso desafio como operadores jurídicos é não permitir que esse tipo de pensamento molde nossas ações.
Temos, o tempo todo, que nos policiar, vigiar nossos pensamentos e ações para que não sejamos reprodutores de um modo de viver que acaba por diminuir a importância da mulher na sociedade. Há diferenças entre homens e mulheres, mas isso não pode conduzir a desigualdades.
OAB/SC: O que são microviolências e micromachismos?
Alice Bianchini: As microviolências são aquelas que normalmente não percebemos diretamente, mas que vão comprometendo nossa estrutura psicológica. A falta de divisão de tarefas domésticas, por exemplo, é uma microviolência, pois ela acaba trazendo prejuízos para as mulheres, caracterizando a dupla jornada de trabalho, a qual, além de não ser valorizada, é entendida como obrigação da mulher. Hoje as mulheres gastam cerca de 22 horas em tarefas domésticas por semana, comprometendo, assim, seu descanso, seu lazer, seu estudo, etc. Os micromachismos aparecem assim, também, sem que consigamos reconhecê-los. É o caso, que sempre gosto de mencionar, da mesa da sala de jantar. Normalmente elas são retangulares, com cadeira da cabeceira que possui um espaldar mais alto e braços (imitando um trono). E quem senta nela? O homem. Ao olharmos tal cenário, fica difícil não pensar (ainda que de forma inconsciente) que o homem é mais importante que a mulher. Posso mencionar outra situação: o nome que se dá as camas. A maior é king (rei) e a menor é queen (rainha).
OAB/SC: Qual o papel do feminismo na advocacia?
Alice Bianchini: O feminismo é um movimento que busca a igualdade substancial entre homens e mulheres. De acordo com o Fórum Econômico Mundial tem havido melhoria nas condições de igualdade entre os sexos no Brasil, mas, se prosseguir no ritmo lento que estamos vivendo, ainda precisaremos de 95 anos para atingirmos a equidade. E, tenho certeza: nenhum de nós está disposto a aguardar tanto tempo. De que forma, então, podemos agir? A advocacia tem um papel fundamental.
A Comissão Nacional da Mulher Advogada atuou e continua atuando no sentido de agir para que a igualdade seja uma realidade em nosso país. Objetivamente, a partir da atuação da Comissão, houve alteração na legislação brasileira em relação às advogadas grávidas ou lactantes. Mas a preocupação não é só com as mulheres de nossa carreira jurídica.
Uma importante contribuição pode ser feita levando informações ao maior número de pessoas, para que se possa entender que a situação da mulher brasileira encontra-se muito debilitada. Para se ter uma ideia em relação à violência, somos o 5º país com o maior número de homicídio de mulheres. A análise é feita a partir do número de mortes a cada 100 mil mulheres. O que se percebe quando se faz uma análise comparativa com outros países é que quanto maior a desigualdade de gênero maior é o índice de violência.
O Brasil ocupa a posição 79 dentre os países com maior índice de desigualdade de gênero (IDG). A receita para diminuir a violência de gênero está colocada: basta diminuir a desigualdade. Mas, esse é o problema. Para alterar os índices de desigualdade, temos que modificar a nossa cultura, que é predominantemente machista (homens e mulheres).
Um grande especialista sobre alteração do modo de comportamento da sociedade e prêmio nobel, após analisar a alteração de culturas milenares, observou que as sociedades que mudaram seus costumes tinham uma coisa em comum: vergonha do quadro que se está vivendo.
Penso que é disso que precisamos. Somente quando nos envergonharmos profundamente da situação que vivemos é que o quadro poderá ser alterado (O código de honra – Appiah). Até lá, infelizmente, muitas mulheres terão perdido a sua vida.
Assessoria de Comunicação da OAB/SC